No escurinho do cinema: a língua do desejo

Em defesa do sexo como linguagem audiovisual, ferramenta de libertação queer e parte poderosa da história do cinema

Crítica de Mau Gosto
9 min readAug 16, 2021
‘Um Grande Mergulho’ (‘A Bigger Splash’, 1973, por Jack Hazan)

Por Thiago Gelli

Como tudo complicado demais para a promoção em massa e vulnerável demais para conversa fiada, o sexo é simplificado ao extremo, compactado em ato robótico e utilitarista — se acredita-se que tudo deve ter finalidade prática, afinal, o corpo não é diferente.

Jogada no fundo de gavetas esquecidas pela narratividade convencional contemporânea, a luxúria se torna então foco desafiador para histórias que desejam ser contadas, esteja esse obstáculo na execução ou na recepção que a aguarda.

Parte disso advém de um costume adquirido ao longo da história do cinema hegemônico, um tratado de silêncio imposto pela censura do estadunidense Código Hays — que definiu a cara do cinema que ainda abastece sonhos com telas prateadas. De acordo com essa tradição, a sensualidade era o único caminho possível, e sempre meramente sugestiva. São pés que se levantam do chão em beijos climáticos, metáforas visuais, mulheres que se tornam místicas panteras e cortes para o preto que até hoje se espalham pelo audiovisual. Qualquer alternativa era proclamada profanidade.

Quando enfim levantadas, as restrições do código abriram espaço para uma produção claramente erótica, que caracterizou a transição entre os anos 60 e 70, o que viria a ser o sexploitation.

Russ Meyer juntou suas bonecas musicistas californianas e Radley Metzger realizou seus longas artísticos e explicitamente sexuais — comédias, dramas, romances — que hoje dificilmente seriam produzidos, muito menos teriam espaço para distribuição, tendo o circuito de cinemas adultos sido praticamente pulverizado ou pela gentrificação, ou pelo abandono.

Pelo resto do mundo, onde o código nunca esteve em atuação, o espírito pareceu confluir da mesma maneira. No Brasil, reinava a pornochanchada na Boca do Lixo; no Japão, os filmes rosa (pinku eiga). Na Europa, vampiros de Jean Rollin se esbaldavam em nudez e homoerotismo; donzelas de Walerian Borowczyk viviam despertares com bestas prostéticas na floresta e gialli italianos exploravam o ardiloso e libertino terror em perversão colorida nas mãos de Sergio Martino, Mario Bava e Lucio Fulci.

‘Uma Lagartixa em Corpo de Mulher’ (‘A Lizard in a Woman’s Skin’, 1971, por Lucio Fulci)

Mas, com o tempo, como é do feitio de baluartes culturais, a sexualidade ou se emudeceu ou se realocou. Mais do que uma simples troca de tendências, no entanto, o recurso foi gradualmente silenciado no circuito de ampla distribuição, inversamente proporcional ao mercado bilionário e agradável de grandes estúdios — hoje composto majoritariamente por produções inofensivas que correspondem ao mesmo caráter de ação.

Essa conjuntura não afetou somente a expressão corporal na sétima arte, como também um escopo maior, que a fagocita. Nesse tipo de linha de produção, na qual o esperado são adaptações fiéis de histórias já conhecidas, filmes não são vistos exatamente como filmes, mas eventos culturais atrelados a enredos — personagens queridos, clímaces esperados ansiosamente. Qualquer potencialidade observada deve estar no que acontece (explicado ao espectador pelo roteiro), e não no que se vê.

A sexualidade, algo dificilmente verbal, escapa da compreensão estimulada ao público. Protestos escandalizados, então, correm soltos: sexo, apenas se contribuir para a história, apenas se oferecer desenvolvimento (uma das palavras mais vagas que há), apenas se tiver propósito.

Mas, para além da discussão do lugar da funcionalidade na arte, todas as críticas acabam em ardil 22 quando convergem justamente em um ponto: o reconhecimento da sexualidade como recurso narrativo.

O desejo contém imensidão, senão não poderia ter carregado uma leva tão volumosa de produção como a listada acima. Dentro de si, há espaço para a comédia, o suspense, o terror, o carinho, a delicadeza, a frustração, o anseio e muito mais. Sensações acessíveis única e exclusivamente pelo sentido do prazer, pela obrigatória suspensão de normas sociais em uma realidade tão íntima. Ele supera exponencialmente o que poderia ser mercantilizado e o que poderia ser expresso em texto ou fórmula.

Há, obviamente, pontos a serem criticados e analisados nas dinâmicas de poder que o envolvem quando inserido em lógicas de trabalho, assim como qualquer outra relação explorada. O olhar masculino, ou male gaze, é uma delas, pivô de anos de assédio, misoginia e desconforto causados dentro de sets de filmagens. Tal conceito da teoria feminista do cinema se refere ao jeito com o qual cineastas masculinos e heterossexuais enquadram mulheres como meros apoios objetificados para as reações e atos de seus heróis viris, e proporciona longa discussão por si só. Estes casos, no entanto, não são descritivos nem definitivos para toda a representação sexual.

Talvez o problema seja justamente esse, o referencial da crítica. Se uma obra por si só é um compêndio de imagens esvaziadas, potências apagadas e tradicionais estruturas problemáticas, é isso o que seus elementos passam a ser. O que muitos dos contrários ao explícito deixam de procurar são os ambientes longe da esfera dominante nos quais a ferramenta é utilizada. Ao mesmo tempo que o sexo pode ser meio de agressão sob tais estruturas, ele pode ser (e foi; e é) linguagem rica para cineastas autorais, simbologia, história completa e, sobretudo, libertação para toda uma gama de criadores queer, cujo emprego de fetiches e lânguidos envolvimentos transparecem fervores que nunca seriam ao menos indicados em outro espaço assimilado.

Se Parceiros da Noite (Cruising,1980) revoltou em sua época por representar a subcultura dos bares de couro em Nova York, supostamente provocando mais medo sobre a figura do homem gay, hoje o filme oferece mais a ser admirado em sua expressão irrestrita dos laços carnais que constituem identidade.

‘Parceiros da Noite’ (‘Cruising’, 1980, por William Friedkin)

Em 2006, John Cameron Mitchell, após o sucesso de Hedwig — Rock, Amor e Traição (2001), conseguiu tecer seus próprios comentários sobre o assunto com o explosivo Shortbus — filme que ousa ser uma simples história de doçura máxima, que caminha pela jornada do autoconhecimento sem temer aliar corpo à mente.

Mitchell criou o longa por um processo de três anos, no qual recrutou anônimos e conhecidos através de audições abertas, que anunciou pela internet como “the sex film project” (o projeto do filme de sexo). Esse foi o primeiro passo da produção, que então partiu para a escrita do roteiro em cima de workshops nos quais os intérpretes improvisavam e ofereciam seus próprios relatos vividos. O resultado final foi um retrato descontraído das vidas dos nova-iorquinos que convergem no salão de festas pansexuais que dá nome ao filme.

É tudo laceado por tons pastéis, por bom-humor, por um senso de fantasia e por vulnerabilidade que não é invadida, mas compartilhada. Em relato ao The New York Times na época, os atores, que nunca antes haviam participado de gravações explícitas e não-simuladas, contaram ao repórter Frank Bruni suas experiências com o filme. Sook-Yin Lee destacou a insegurança sobre o próprio corpo, que não desapareceu ao longo do processo, mas foi reaproveitada para a narrativa e respeitada por seus comparsas. Em um caso específico, pediu à equipe que também se despisse em uma cena de nudez, o que fizeram sem grande problema.

O que Shortbus acaba por compor é uma realidade muito mais próxima da verdadeira — na qual a sexualidade é instrumento para mais do que si mesma. A maneira expansiva com a qual retrata os laços formados por seus personagens parece compensação pela supressão tão intensa de tal sensibilidade sob convenções heteronormativas de abstinência, omissão ou desprezo. Os 30 minutos finais do longa são reservados para pouco diálogo falado, enquanto personagens resolvem os conflitos delineados e simplesmente vivem o êxtase adquirido com a honestidade e desprendimento que conquistam, seja em cômodos intimistas ou em praias místicas de fantasias pessoais.

‘Shortbus’ (2006, por John Cameron Mitchell)

Sua última cena, um bacanal que se inicia no salão enquanto a andrógina Justin Vivian Bond canta a faixa In The End é pura alegria comunal e celebratória. “Enquanto seu último suspiro começa, você descobre que seus demônios são seus melhores amigos, porque todos nós conseguimos no final” ecoa cantado sobre uma banda marcial que se junta à massa de corpos (aproveitando de um trocadilho anglófono ao pausar entre “we all get it in” — todos botamos para dentro — e “the end” — no fim).

Se um filme pode contrariar a oposição estrita à representação clara, Shortbus é esse filme. Sexo não é um truque de festa, nem um recurso barato para garantir algum nível de conversa e arrecadamento para filmes. Mesmo se feito com essa intenção, a composição de cena revela o bastante tanto sobre quem a constrói quanto sobre quem a consome. Sexo fala mais do que vende.

Para Mitchell, as escolhas do filme são justificadas pois “o modo com o qual as pessoas se expressam sexualmente pode lhe dizer muito sobre quem elas são. Há quem me pergunte, ‘você não poderia ter contado a mesma história sem ser explícito?’. Eles não me perguntam se eu poderia ter feito Hedwig sem as canções. Por que não se permitir usar todas as cores no estojo de tintas?”.

‘Shortbus’ (2006, por John Cameron Mitchell)

Tal afirmação é fácil de ser observada seja qual for a obra vista. Para Pasolini em Teorema (1968), um bissexual e sedutor Terence Stamp é a chave para a disrupção de uma família burguesa, que enlouquece após encontrá-lo.

Para nomes do New Queer Cinema como Todd Haynes, Tom Kalin e Gregg Araki, o sexo provou ser um ato transgressivo por natureza, indispensável para se opor à política de extermínio que almejava executar homens gays e a comunidade LGBTQ+ em meio à crise da AIDS. Em The Living End (1992), as relações entre protagonistas traduzem a conturbada realidade criminosa e mórbida na qual se encontram. Já em Swoon (1992), a demonstração do sexo é essencial para desassociar a homossexualidade do horrendo assassinato cometido por Leopold e Loeb, que também eram namorados, em 1924.

Para o já citado Metzger, Score (1974) foi a chance de executar uma obra que impossibilita o pedido por racionalidade e utilidade no sexo. Não há narrativa maior a ser servida — o choque entre os casais protagonistas, que leva a uma prolongada erupção de homoerotismo, é o ponto final. Quando não está centrado nos envolvimentos físicos de seus personagens, o filme abre espaço para diálogo repleto do humor que se espera de paródias dessa era cinematográfica. Sua forma pode ser facilmente subestimada como espécime datado de um tempo esquecido, frequentemente rebaixado como um tipo de sub-arte, ou descartado como qualquer forma artística em absoluto, mas pode também ser um belo e onírico exemplo de identidades fragmentadas que se encontram no espaço de liberdade sexual, abraçadas por um alívio que sob nenhuma outra circunstância poderiam atingir.

‘E então, como nos contos de fada, todos tiveram um final feliz’ — ‘Score’ (1974, por Radley Metzger)

Removidos desse universo, corpos perdem forma e possibilidades de existência perdem a voz. Uma crítica imediata contra o sexo adota não só o moralismo, mas uma ativa agressão direcionada àqueles que não têm sua existência afetiva amplamente acessível, sejam esses indivíduos e comunidades queer ou não. É comportamento redutivo e conformado à padronização do cinema como campo frígido, nunca uma extensão da humanidade de quem o faz e de quem por ele se apaixona.

Contra essa onda puritana, no entanto, hoje se erguem muitos. Num levante rápido e arbitrário, exemplos são Faca no Coração (2018, Yann Gonzalez); Possessor (2020, Brandon Cronenberg); Raw (2016, Julia Ducournau); Shiva Baby (2020, Emma Seligman); Zola (2021, Janicza Bravo); A Favorita (2018, Yorgos Lanthimos); Vento Seco (2020, Daniel Nolasco) e Apocalypse After (2018, Bertrand Mandico). Apesar de estar no diferente mundo televisivo, vale também mencionar Fleabag (2016–2019).

Essas histórias, assim como milhares de outras que ainda devo descobrir ou que apenas não citei, são o bastante para traçar um argumento convincente em defesa do quinto pecado capital, que lateja universalmente, por mais que atacado com a mesma força. David Hockney, um dos tantos artistas gays que moldaram a arte pop com sua libertinagem destemida, o disse muito bem na frase que estampa a capa deste texto. Por favor, fuja da ética puritana. Às vezes, como em The Rocky Horror Picture Show (1975), é melhor viver pelas emoções irrestritas de um cabaret apocalíptico.

‘Preciso ser forte e tentar me segurar, ou minha mente pode enlouquecer — e minha vida será vivida… pelas emoções’ diz o doutor Everett Scott em ‘The Rocky Horror Picture Show’ (1975, por Jim Sharman)

--

--

Crítica de Mau Gosto

Sugerindo, analisando, resenhando e descobrindo depravações cinematográficas do passado, presente e futuro